DROGADIÇÃO: Um megaproblema atual.


Texto: J.F.REGIS DE MORAIS, PH.D.// Professor titular da PUC-Campinas, SP.
Como subsídio mais global às abordagens propriamente técno-cientificas, será conveniente que aqui proponhamos um tratamento, para o tema da drogadição, que se situe na zona de confluência entre a sociologia e a filosofia social. Talvez uma abordagem como a que propomos emoldure as discussões propriamente cientificas do aludido tema.
Ora, o sociocultural é possibilidade e via de acesso à compreensão de qualquer problema particular, dada a sua abrangência que não nos permite esquecer que as fármaco-dependências e o alcoolismo são problemas multifatoriais, cuja abordagem não deve admitir simplificações reducionistas. Necessário não se perder de vista o fator hereditário, nem negligenciar importantes moveis psicológicos e propriamente psicanalíticos, tampouco se deixando de parte os fatores familiares e mesmo os macrossociais.
Naturalmente que, num tratamento especializado, cada qual dos moveis acima apontados deve-se constituir em uma monografia cientifica. No entanto, permita-se nos repetir, buscamos uma visão de conjunto que se faz possível no encontro da filosofia social com a sociologia. E, assim, esclarecidas nossas metas, incumbe-nos buscar alcança-las no âmbito das nossas possibilidades.
SOCIEDADE: SOCIOPATIAS E DROGADIÇÃO
O filosofo alemão Ernst Cassirer, ao longo do primeiro capitulo de sua notável obra “antropologia filosófica-ensaio sobre o homem”, adverte-nos quanto a que, antes do século XX, nenhuma outra época ou idade reunira tamanha quantidade de dados sobre o ser humano. Dados anatomo-fisiologicos, históricos, econômicos, demográficos, sociológicos etc. – os quais hoje imaginamos registrados em memorias de potentes computadores. No entanto, ponderava preocupadamente o filosofo, o ser humano talvez nunca tenha compreendido tão pouco a si mesmo. Isto porque falta uma estrutura articuladora de tantos dados e informações, falta uma espinha dorsal, que dê organicidade e sentido ao que o homem hoje sabe de si mesmo (Cassirer, 1972: 15-46, passim).
Sem duvida que uma tal perplexidade em meio à tentação do múltiplo e já indicadora de que temos vivido em uma sociedade enferma. O vocábulo “enfermo” derivou da expressão latina in firmus ( o que perde a firmeza, que esta debilitado), daí o considerarmos muito bem aplicado à nossa realidade social. Mais adequadamente sentimos a aplicação da expressão “sociedade enferma” quando procuramos vislumbrar o complexo de crises que abala o nosso tempo.
Desde a evolução do industrialismo, ainda no século XIX, passou-se a viver grave crise antropológica com o estabelecimento de uma perversa formula que sempre foi apresentada assim: homem=produção=dinheiro. Aí se encontram as raízes de muitos males contemporâneos, pois se a matemática nos ensina que se A é igual a B, e B é igual a C, temos que A é igual a C, e também que a vida humana fica drasticamente transformada em mercadoria. Aí não estará a primeira origem desse desprezo pelo valor intrínseco da vida, que se exprime em muitas violências e sobretudo na violência autodestrutiva do uso de drogas toxicas?
Esta formula está na base das distorções da própria sociedade consumista cujo desnorteamento de valores tem significado falta de parâmetros humanizados, para orientação. Ora, isto inevitavelmente traz como consequência uma debilitação ética. A formula em apreço conjuga-se com a neurose do lucro, a qual há muito instalou em nossa vida social um pesado clima de voracidade e individualismo, ficando as novas gerações amarguradas por não encontrarem em seu mundo reais manifestações de solidariedade humana.
O mundo de toda pessoa é primeiramente constituído pela família, mas esta se encontra desestruturada e em tormentosa crise de identidade. Não fora isto, adolescentes não teriam queimado vivo o índio pataxó Galdino nem estariam se destruindo sob o efeito dos venenos mercadejados no trafico de drogas. Temos uma sociedade a tal ponto cega e obtusa que parece ainda não ter percebido que os jovens estão escolhendo as motocicletas e outras maquinas velozes para o seu triste ritual de autodestruição.
Somam-se a tudo isso, agora atingindo os economicamente infradotados, os perversos processos de exclusão socioeconômica. Contingentes imensos que calculadamente são deixados de fora dos planos de desenvolvimento econômico, uma espécie de massa sobrante previamente calculada cuja situação social acaba sendo mesmo inferior à dos escravos do século passado, de vez que não se enquadra na lei de rentabilidade nem no sistema amplo de valoração econômica, e nem mesmo no conceito de exercito industrial de reserva. Em resumo: é uma espécie de lixo social indesejado (Assman, 1994: 5-10).
Ora, tais processos de exclusão socioeconômica são necessariamente geradores de ressentimentos, cuja impotência ante os excluídos acaba transformando-se em autodestrutividade.
Se ainda acrescentarmos ao que temos comentado até aqui toneladas de lixo mental que uma mídia corrompida e corruptora lança em nossa psicosfera não teremos mais como duvidar das doenças de nossa sociedade. Uma das reações mais trágicas ante um mundo desanimador é a opção pelas drogas toxicas. Em seu sábio livro drogadição: prevenção, escola, Charbonneau pondera que a historia das drogas foi uma até à guerra do Vietnã, e está sendo outra historia após esta guerra. Toda aquela juventude envolvida numa guerra suja, posta em selvas desconhecidas e vivendo um inferno cotidiano, só conseguiu manter-se ali sob o efeito constante de drogas. E os sobreviventes declaram precisar seguir drogando-se para fugir das lembranças tormentosas da guerra. Diz Charbonneu, um canadense com excelente estilo em português, nossa sociedade de violência fez do homem que a constitui um farrapo desesperado. Segundo Paul Ergene Charbonneu, após a guerra do Vietnã a droga se tornou onipresente: na família, nas escolas, em seitas religiosas, nos locais de trabalho e de lazer.
O presente século não brotou do nada. Ele é fruto de uma evolução histórica; foi esculpido pelos aspectos equivocados da modernidade, bem como pelos seus lados bons. No entanto, o que temos hoje é uma sociedade doente que busca se envenenar com as drogas mercadejadas pela clandestinidade. 

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