DEMANDAS DA MENTE HUMANA. Por Ulisses Capozzoli



DETERMINADA PLANTAS PRODUZEM SUBSTÂNCIAS COM EFEITOS ESPECÍFICOS NAS FUNÇÕES MENTAIS E EMOCIONAIS HUMANAS, NÃO SÓ EM RELAÇÃO À PERCEPÇÃO, MAS TAMBÉM AO ESTADO DE CONCIÊNCIA.
Uma das situações mais fascinante no museu Americano de historia natural, em Nova York, reproduz o trabalho de um xamã siberiano tratando de uma criança enferma e desfalecida sobre um catre. Há uma força profunda e misteriosa na cena que mostra o xamã de costas – da posição em que é observado pelo publico – com um cinto largo de couro preso pela cintura a uma corrente mantida firme nas mãos de um jovem auxiliar.
A representação, em tamanho natural, sugere uma estranha e convincente realidade de ocorrências repetidas não só nos ermos gelados da Sibéria, mas também no interior de cavernas e grutas, entre outros espaços onde humanos abrigaram seus doentes ao longo dos milhares de anos que precederam a prática da medicina atual.
Em muitos casos, e isso ocorre ainda hoje, esses trabalhos são feitos com ajuda de plantas alucinógenas. Elas permitem a alteração de consciência tanto dos xamãs quanto de seus pacientes. Juntos, eles mergulham em universos paralelos em busca de modalidades de cura que permanecem longe de inteiramente decifradas pela ciência.
Há milhares de anos – a partir de um local e data que arqueólogos e antropólogos talvez nunca venham a determinar – a medicina divide com a religião o uso de substâncias alucinógenas com a finalidade de alterar a consciência para acessar dimensões não convencionais da realidade.
Em relação ao uso religioso de substâncias capazes de alterar a consciência, no Brasil o fato mais recente e controvertido foi a morte do cartunista GLAUCO, assassinado em São Paulo no inicio de março de 2010. GLAUCO foi morto por um jovem, talvez com perturbações mentais, dependente químico. Ele teria se aproximado do santo-daime para se livrar dessa situação.
O santo-daime, religião que surgiu no inicio do século passado na Amazônia, usa a ayahuasca, bebida preparada a partir de duas plantas, o cipó caapi e a folha de um arbusto, a chacrona, para alteração da consciência de seus adeptos. Ainda que legalmente autorizado a utilizar a bebida em rituais religiosos, que se espalham da Amazônia para outras regiões do país, o santo-daime pode ter sua imagem afetada pela violência que atingiu GLAUCO e um de seus filhos. E isso pode tornar ainda mais difíceis a compreensão e a aceitação pelo publico do uso dessas substâncias, mesmo com fins religiosos.
Já do lado da medicina, pode não ser apenas coincidência que os alucinógenos mais importantes de plantas e hormônios cerebrais – serotonina e noradrenalina – tenham a mesma estrutura química básica. São como cópias de uma chave capaz de abrir uma fechadura, neste caso uma célula nervosa.
SCHULTES E HOFMANN
Essa surpreendente relação pode ajudar a explicar a potência psicotrópica desses alucinógenos, segundo Richard Evans Schultes e Albert Hofmann.
Schultes (1915 - 2001) dirigiu o museu botânico da Harvard University, e Hofmann (1906 - 2008) descobriu o LSD25 em 1943, eles são autores de Plants of the gods: origins of hallucinogenic use (plantas dos deuses: origens do uso dos alucinógenos), uma abordagem interdiciplinar sobre o uso de plantas alucinógenas desde os tempos mais remotos da historia da humanidade.
Guiado por seu ídolo, o naturalista inglês Richard Spruce (1817 – 1893), que passou 15 anos explorando a Amazônia, Schultes foi pioneiro em alertar para o risco de destruição da floresta Amazônica, onde fez pesquisas, com perda de riqueza botânica e conhecimento acumulado por povos indígenas crescentemente extintos.
Quanto a Hofmann, que acidentalmente descobriu os efeitos do LSD, o uso abusivo da droga durante os anos 60 fez com que lamentasse essa situação. Argumentou sempre que desenvolveu uma substância para uso medicinal – em psicoterapia, casos de alcoolismo e disfunções sexuais, entre outros. Em 16 de Abril de 1943, quando foi contaminado e acidentalmente fez sua descoberta, Hofmann relatou uma inquietude notável, combinada a uma prazerosa sensação de leveza. Três dias depois, se decidiu por uma experiência pessoal baseada em uma dose de 250 microgramas de LSD e relatou curioso: Um demônio havia me possuído. Ele possuiu meu corpo, mente e alma. Pulei e gritei, tentando me livrar, mas então me afundei no sofá, sem ter o que fazer.
Essa data ficou conhecida como “o dia da bicicleta”, porque, depois de tomar a dose, ele foi para casa pedalando.
Em 1958 Hofmann isolou duas poderosas substâncias psicoativas, a psilocibina e a psilocina, do cogumelo mágico mexicano (rivea corymbosa), e em 1962 teve um encontro com a mais famosa xamã mexicana, María Sabina.
Apresentou a ela pílulas sintéticas dessas substâncias e pediu-lhe as utilizasse para testar os resultados. Sabina provou, aprovou e respondeu a Hofmann que isso lhe permitiria realizar cerimônias rituais mesmo quando não tivesse disponibilidade do produto in natura. Entre cogumelos alucinógenos talvez o mais conhecido seja o Amanita Muscaria, a que Lewis Carroll se refere em Alice no país das maravilhas, uma das obras-primas da literatura mundial. O Amanita, que cresce na Natureza, é usado pelos humanos há mais de 6 mil anos. Na Sibéria, povos primitivos utilizavam a urina de seus consumidores como bebida alucinógena, já que as substancias psicoativas passam incólumes pelo organismo humano.
Entre as centenas de substâncias que podem integrar a composição química de uma planta, Schultes e Hofmann mostram que, surpreendentemente, “apenas uma ou duas, eventualmente até meia dezenas delas, são responsáveis por efeitos psicoativos. As substâncias com efeitos fisiológicos e psíquicos anormais, acrescentam, são encontradas apenas em algumas plantas muito especiais, “e como regra essas substâncias tem estruturas químicas muito diferentes dos constituintes vegetais convencionais e produtos metabólicos comuns”.
CHAVE BIOQUÍMICA
De acordo com a dupla de pesquisadores científicos, ainda é desconhecida a função que essas substâncias especiais podem ter na vida das plantas, apesar de várias teorias tentarem responder essa questão. Uma delas leva em conta o fato de o principio ativo das plantas consideradas sagradas conter nitrogênio, o que faz pensar que isso represente uma espécie de lixo metabólico, como ocorre com o ácido úrico nos organismos animais. Mas ainda não há evidências de que essa hipótese seja consistente.
Muitos dos compostos psicoativos das plantas são tóxicos em doses elevadas, o que, no passado, sugeriu que fosse uma forma de proteção contra o ataque de animais. Schultes e Holfmann, entanto, argumentam que também isso parece ser inconsistente, pois muitas plantas venenosas são consumidas por animais imunes a seus componentes tóxicos.
A conclusão algo perturbadora, sugerem, é a razão de certas plantas produzirem substâncias com efeitos específicos nas funções mentais e emocionais humanas, não só quanto à percepção, mas também ao estado de conciência.
As considerações de Schultes e Holfmann – apesar de intrigante sugestão sobre a existência de uma ponte desconhecida conectando certo tipo de plantas à mente humana – ainda não foram suficientes para levar à compreensão ampla quando a uma necessidade tipicamente humana de alteração de consciência com diferentes propósitos. Assim, o que parece prevalecer é uma visão geral sumária em torno da palavra droga, quase sempre carregada de sentido negativo. Ainda que, evidentemente, seja indispensável discernir o uso de substância capazes de produzir alterações de consciência em rituais religiosos, xamãnicos ou medicinais de usos abusivos e alienado-alienantes. Não só de plantas como de outras substâncias, inclusive as sintéticas.
Outra diferença significativa aqui é que, enquanto a alteração de consciência em rituais religiosos, xamãnicos ou mesmo de reafirmação de raízes histórico-culturais – como acontece em sociedades ágrafas, caso de povos indígenas tradicionais -, o uso abusivo quase sempre está deslocado de uma contextualização cultural e/ou afetiva.
A dificuldade de reconhecimento contextualizado e sistematizado quando ao uso de substancias especificas para a alteração da consciência, produzindo o que se pode chamar de realidade não comum, está presente na obras do Antropólogo Carlos castaneda. Especificamente o primeiro de seus 13 livros, a erva do diabo, quando ao uso do peiote entre outras substancias, para quebrar a armadura do próprio Castaneda, num aprendizado que ele teria tido com seu mentor, Don Juan Matus. Nas poucas entrevistas que concedeu, Castaneda, um dos gurus da contracultura dos anos 60/70, enfatizou que não fazia uso de substância alucinógena. E só se valeu delas numa fase especifica do aprendizado, sob supervisão de seu mestre, para romper o que pode ser entendido como uma armadura de racionalidade cartesiana.
Para Castaneda nossas expectativas usuais sobre a realidade são criadas por um consenso social. Ele nos ensina como ver e perceber o mundo. O truque da socialização consiste em nos convencer de que as descrições com que estamos de acordo definem os limites do mundo real. O que chamamos de realidade é apenas um modo de ver o mundo, um modo sustentado pelo consenso social.

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