"Ensinem os filhos a falhar"
Estudioso das relações familiares, o psicanalista belga
Jean-Pierre Lebrun diz que aprender a lidar com o insucesso
é fundamental para livrar-se de apuros na vida adulta
Jean-Pierre Lebrun diz que aprender a lidar com o insucesso
é fundamental para livrar-se de apuros na vida adulta
Ronaldo Soares
Nos
últimos trinta anos, o modelo tradicional de família passou por alterações
significativas, principalmente no mundo ocidental. A ideia dos pais como
senhores do destino dos filhos vem desabando progressivamente, no ritmo das
transformações sociais. As consequências disso não são necessariamente ruins,
como explica o psicanalista belga Jean-Pierre Lebrun, uma das principais
referências na Europa no estudo sobre mudanças nas relações entre pais e
filhos: "O que vale é a capacidade dos pais de fazer os filhos crescer.
Esse é o bom ambiente familiar, independentemente do desenho que a família
tenha". Lebrun esteve no Rio de Janeiro, para participar do 3º Encontro
Franco-Brasileiro de Psicanálise e Direito. A seguir, os principais trechos da
entrevista que concedeu a VEJA.
Por que os
pais hoje têm tanta dificuldade de controlar seus filhos?
Isso é
reflexo da perda de legitimidade. Até pouco tempo atrás, a sociedade era
hierarquizada, de forma que havia sempre um único lugar de destaque. Ele podia
ser ocupado por Deus, ou pelo papa, ou pelo pai, ou pelo chefe. Isso foi se
desfazendo progressivamente, e o processo se acentuou nos últimos trinta anos.
Hoje a organização social não está mais constituída como pirâmide, mas como
rede. E na rede não existe mais esse lugar diferente, que era reconhecido
espontaneamente como tal e que conferia autoridade aos pais. As dificuldades
para impor limites se acentuaram, causando grande apreensão nas pessoas quanto
ao futuro de seus filhos.
Existe uma
fórmula para evitar que os filhos sigam por um caminho errado?
É preciso
ensiná-los a falhar. Uma coisa certa na vida é que as crianças vão falhar, não
há como ser diferente. Quando os pais, a família e a sociedade dizem o tempo
todo que é preciso conseguir, conseguir, conseguir, massacram os filhos. É
inescapável errar. Todo mundo, em algum momento, vai passar por isso. Aprender
a lidar com o fracasso evita que ele se torne algo destrutivo. Às vezes é
preciso lembrar coisas muito simples que as pessoas parecem ter esquecido
completamente. Estamos como que dopados. Os pais sabem que as crianças não
ficarão com eles a vida inteira, que não vão conseguir tudo o que sonharam, que
vão estabelecer ligações sociais e afetivas que, por vezes, lhes farão mal, mas
tentam agir como se não soubessem disso. Hoje os filhos se tornaram um
indicador do sucesso dos pais. Isso é perigoso, porque cada um tem a sua vida.
Não é justo que, além de carregarem o peso das próprias dificuldades, os filhos
também tenham de suportar a angústia de falhar em relação à expectativa
depositada neles.
Falando
concretamente, como é possível perceber essa diferença no comportamento das famílias hoje?
A mudança
é visível. Na Europa, por exemplo, quando um professor dá nota baixa a um
aluno, é certo que os pais vão aparecer na escola no dia seguinte para reclamar
com ele. Há vinte, trinta anos, era o aluno que tinha de dar satisfações aos
pais diante do professor. É uma completa inversão. Posso citar outro exemplo.
Desde sempre, quando se levam os filhos pela primeira vez à escola, eles
choram. Hoje em dia, normalmente são os pais que choram. A cena é comum. É como
se esses pais tivessem continuado crianças. Isso acontece porque eles não são
capazes de se apresentar como a geração acima da dos filhos. É uma consequência
desse novo arranjo social, em que os papéis estão organizados de forma mais
horizontal.
Como o
senhor avalia essa mudança? Esse novo arranjo é pior do que o anterior?
Hoje os
pais precisam discutir tudo, negociar o que antes eram ordens definitivas. E
isso não é necessariamente algo negativo, desde que fique claro que, depois de
negociar, discutir, trocar ideias, quem decide são os pais.
Essas
mudanças na estrutura social podem influenciar em aspectos negativos como, por
exemplo, o uso abusivo de drogas?
Não há uma
relação automática. Os mecanismos pelos quais os indivíduos se tornam
dependentes químicos são diversos e complexos. A psicanálise ajuda a
identificar alguns deles. Vou dar um exemplo. Manter uma criança em satisfação
permanente, com sua chupeta na boca o tempo todo, fazendo por ela tudo o que
ela pede, a impede de ser confrontada com a perda da satisfação completa. E
isso vai ser determinante em sua formação.
Mas o que
essa perda tem a ver com o fato de as pessoas enveredarem por um caminho autodestrutivo?
É uma anomalia no processo de
humanização. Não nascemos humanos, nós nos tornamos. Isso ocorre quando
aprendemos aquilo em que somos singulares entre todos os animais que habitam o
planeta. Somos os únicos capazes de falar. Não se trata apenas de aprender
ortografia ou usar as palavras corretamente. Quando dominamos a faculdade da
linguagem, adquirimos uma série de características muito especiais, como, por
exemplo, a consciência de que somos mortais. Aprendemos a construir as pontes
que levam a um entendimento superior do mundo e de nossa condição. Isso é o que
nos diferencia e nos torna completamente humanos. Um desequilíbrio nesse
processo pode ter consequências. É aí que entra a explicação psicanalítica para
o ingresso no universo das drogas. Aprender a falar, ou tornar-se humano, é
algo que não ocorre espontaneamente. É uma reação a uma perda do estado
permanente de satisfação completa com a qual somos confrontados na primeira
infância. Ou seja, o processo de humanização começa pelo entendimento de que
jamais haverá a satisfação completa. É esse o curso saudável das coisas. Se os
pais boicotam esse processo, podem estar cometendo um erro.
Com que
consequências?
Isso faz com que estejamos cada vez
menos preparados para lidar com o sofrimento da nossa condição humana. Há
séculos que as drogas têm algo de paraíso artificial, como diz Baudelaire. Ou
seja, uma forma de se refugiar da dor humana, da insatisfação. As drogas sempre
serviram para evitar o confronto com esse sofrimento. Quanto menos você está
preparado a suportar as dificuldades, mais está inclinado a se evadir, a
recorrer a substâncias, sejam as drogas ilícitas, sejam as medicamentosas, para
limitar o sofrimento que vai se apresentar. Com o desenvolvimento da
farmacologia, essas substâncias se tornaram muito acessíveis. Isso pode criar
distorções. É muito mais simples tomar uma Ritalina para não ser hiperativo do
que fazer todo o trabalho de aprender a suportar a condição humana. Quando
criança, a pessoa já precisa ser confrontada com a condição humana da perda de
satisfação. Dessa maneira, na idade adulta, sua relação com o fim de uma paixão
amorosa, por exemplo, tem maiores chances de ocorrer de maneira mais aceitável
e menos traumática.
Por que as
drogas têm apelo especial para os jovens?
Eles são
mais sensíveis a esse fenômeno porque têm uma tendência espontânea a, quando se
tornam adultos, ser novamente confrontados com as dificuldades da existência.
É, de certa forma, a repetição daquilo que haviam vivenciado na infância,
quando foram, ou deveriam ter sido, apresentados à ideia de perda da satisfação
completa, de que não ficariam com a chupeta na boca a vida inteira, por
exemplo. Se, no ambiente em que esses jovens vivem, há uma abundância de
produtos que funcionam como um meio de evitar essas dificuldades, eles
mergulham de cabeça. Como também veem nisso certo caráter transgressivo, todas
as condições estão dadas para que eles recorram às drogas.
Que
conselhos o senhor daria a pais que têm filhos viciados?
É preciso
não achar que, pelo fato de os filhos usarem drogas, tudo está perdido. Isso
não contribui em nada. Caso contrário, o jovem drogado, além de conviver com o
próprio drama, terá de carregar a angústia dos pais sobre os ombros. Esse é o
momento em que os pais devem aceitar que algo não funcionou direito em vez de
tratar o problema como se tudo estivesse perdido. Nem sempre está.
Há alguma
terapia que funcione contra a dependência química?
Cada caso
requer um trabalho. Não existe terapia milagrosa. Há tentativas interessantes,
de pessoas que se ocupam de refazer com o sujeito o trabalho de suportar as
frustrações, as impossibilidades, os limites. Esse trabalho pode ajudar as
pessoas a se livrar da dependência. Não existe até hoje uma droga que chegue a
resolver o problema da droga. Momentaneamente, a pessoa pode até ficar contente
se conseguir se tornar um pouco menos ansiosa, mas é preciso ver que efeito
isso tem a longo prazo.
Existem
dependentes irrecuperáveis?
A
psiquiatria não é uma ciência universal, ela não diz o que vale para todos, ou
mesmo para uma série de pacientes. É preciso trabalhar sempre caso a caso. Mas
eu não diria nunca que um viciado em drogas é irrecuperável. Existem outros
elementos em jogo que precisam ser considerados. Não há dependência química que
não seja fruto de uma interação malsucedida entre o contexto social em que o
indivíduo está inserido e o seu trajeto singular desde a infância.
Pouco mais
de um mês atrás, no Rio de Janeiro, um rapaz viciado em crack matou uma amiga
que tentava ajudá-lo. O pai do rapaz atribuiu a tragédia à dificuldade de
internar o filho. O senhor é favorável à internação de dependentes químicos?
Essa é uma
questão complicada mesmo. Na Europa, de modo geral, optamos cada vez menos pela
internação de dependentes químicos. Quando a internação é necessária, esperamos
que ela se dê de forma voluntária. Nos casos em que isso não é possível, a
internação dura em média quarenta dias e é acompanhada de medidas
administrativas para evitar abusos que já aconteceram, de internações
excessivamente longas. Nesse aspecto, minha posição é como a dos europeus de
maneira geral. Ficamos um pouco divididos entre manter nosso princípio
democrático de que, mesmo doente, cada um tem o direito de dar sua opinião e,
por outro lado, ter de reconhecer que em determinadas situações isso não é
possível.
Costuma-se
atribuir o mau comportamento dos filhos à falta da estrutura familiar
tradicional, como a que ocorre após uma separação. Qual a exata influência que
isso pode ter?
Uma
família organizada de forma aparentemente harmônica não necessariamente faz de
um jovem uma pessoa capaz de conviver e suportar o sofrimento inerente à condição
humana. Essa capacidade pode ser pequena em famílias aparentemente realizadas,
com estrutura sólida. Assim como pode ser enorme em uma família conflituosa,
dividida, conturbada. Por isso, não se deve levar em conta apenas o aspecto
exterior da família. O que vale é a capacidade dos pais de fazer os filhos
crescer. De incutir-lhes a verdadeira condição humana. Esse é o bom ambiente
familiar, independentemente do desenho que a família tenha.
O melhor
mesmo, então, é aceitar que a existência é sofrida?
O processo
é mesmo muito mais complexo do que ocorre com outros animais. Um cão nasce cão
e será assim para o resto da vida. Um tigre será sempre tigre. Um humano, no
entanto, precisa se tornar plenamente humano. É uma enorme diferença. Esse
processo leva uns vinte, 25 anos e está sujeito a percalços. Na Renascença já
se falava disso: não somos humanos, nós nos tornamos humanos.
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