Aids X Drogas: Uma relação muito complicada

FONTE: http://saberviver.org.br/publicacoes/aids-x-drogas-uma-relacao-muito-complicada/


Drogas e álcool em excesso costumam prejudicar a saúde de qualquer pessoa. Para quem tem o sistema imunológico debilitado por causa do HIV, o dano pode ser ainda maior. Sem falar que para seguir um tratamento tão complexo como o contra a Aids é preciso ter muita força de vontade e disciplina. Será possível lutar contra o HIV quando se tem a vida em desordem por causa de um vício?

Os profissionais de saúde que trabalham em programas de redução de danos em hospitais e Organizações Não Governamentais (ONGs) acreditam que sim. A idéia desses programas é tentar reduzir os danos provocados pelas drogas e o álcool e iniciar o tratamento contra a Aids, ainda que as condições não sejam as ideais. O objetivo é garantir a melhoria da qualidade de vida da pessoa soropositiva, mesmo que ela não consiga, naquele momento, se livrar das drogas. Neide Gravato, assistente social e diretora da unidade de controle e prevenção do programa de DST/Aids de Santos – SP, trabalha desde o começo da epidemia de Aids, nos anos 80, com a idéia do contrato possível. “Discutimos com o usuário de drogas o que é possível ser feito naquele momento para reduzir os danos provocados pela droga”, diz ela. Quando esse usuário consome um volume muito grande de drogas injetáveis, a primeira coisa a fazer é tentar conscientizá-lo sobre a importância de não compartilhar a seringa com outras pessoas para diminuir o risco de ele se contaminar com doenças como a hepatite, por exemplo, o que pode piorar seu estado de saúde. Para isso, lhe é oferecido um kit contendo seringa, água destilada, um recipiente para preparar a droga e lenço para desinfetar. Também é feito um trabalho de sensibilização para que ele não descarte esse material em um local que possa oferecer riscos para outras pessoas. Com os viciados em crack, forma de uso da cocaína que causa um prejuízo muito grande ao sistema nervoso, tem sido negociada uma redução da quantidade de droga e da freqüência de uso. Segundo Neide Gravato, essa forma de tentar diminuir os danos causados pelas drogas tem dado certo: “Sei que não é fácil, mas conseguimos que alguns pacientes trocassem a cocaína injetável ou o crack pela maconha, que, segundo eles, tranqüiliza e aumenta o apetite. De qualquer forma, orientamos quanto ao prejuízo de qualquer tipo de droga. Nosso objetivo é ajudá-lo a livrar-se do vício. Mas, se impusermos a necessidade de parar com as drogas imediatamente, esse objetivo se torna inatingível e ele acaba desistindo”, afirma a diretora.
A importância do suporte psicológico
Para Valvina Adão e Caio Westin, psicólogos do Centro de Referência e Treinamento em HIV/Aids de São Paulo – SP, o esquema de medicamentos indicado pelo médico deve estar de acordo com a possibilidade que esse paciente usuário de drogas tem em cumprir regras, pois tratamentos muito complexos geralmente não são bem sucedidos. “Quem é dependente de drogas tem dificuldade em seguir regras, por isso uma negociação com o médico sobre como tomar os medicamentos é essencial”, afirma Valvina Adão. Porém, mais importante que o esquema de medicamentos escolhido é a história de vida de cada um. Para os psicólogos, a estrutura pessoal é determinante para a aceitação do fato de ser portador do HIV e para a adesão ao tratamento anti-Aids. “É fundamental haver no serviço de saúde um atendimento psicológico que dê suporte ao paciente”, diz Caio Westin. “Precisamos ajudá-lo a reorganizar sua vida, a restabelecer o vínculo familiar e a fazer novos vínculos”.
Valvina aponta que o maior problema entre os soropositivos não é a droga e sim o álcool. “O número de dependentes de álcool é bem maior do que o de dependentes de drogas”, diz ela. “Muitos acham que têm que optar entre o álcool e a medicação e optam pela bebida alcoólica. Aconselhamos a distanciar a ingestão do remédio da ingestão do álcool. Isso também vale para droga”. O infectologista Estevão Portela atesta que não há problema de interação entre álcool, drogas e medicamentos anti-retrovirais: “O que acontece é a soma da toxidade do álcool e da droga com a toxidade dos medicamentos. A pessoa pode, por exemplo, ter mais problemas como enjôo e diarréia”, diz ele. Portela ainda aconselha atenção ao período de jejum que alguns medicamentos exigem. Durante esse período, o álcool deve ser evitado.
No Brasil, são poucos os centros de convivência em hospitais ou em ONGs que oferecem tratamento ao portador do HIV usuário de drogas ou álcool sem apelar para o discurso da repressão e sem exigir a abstinência como condição para que ele se trate. No entanto, são os locais que se abrem para acolher o dependente químico que conseguem os melhores níveis de adesão ao tratamento. “O paciente usuário de drogas, de uma forma geral, gosta de ir ao serviço de saúde, quando esse é um local aberto para recebê-lo”, afirma Neide Gravato. “Oferecer um lugar onde eles possam sempre voltar é muito importante para se criar um vínculo com o serviço”, diz ela. Muitos passam o dia no hospital para comer, dormir, conversar ou cuidar da higiene. Um dia, um deles se interessa em ver um vídeo ou participar de uma oficina. E assim vão sendo dados os passos em direção a uma vida longe da dependência. “O uso da droga está ligado à falta de alternativas atrativas”, acredita a diretora.
Quem trabalha com redução de danos sabe que deixar as drogas ou o álcool é um processo doloroso, muitas vezes provisório, e que as recaídas são comuns. “O tempo do indivíduo tem que ser respeitado. Também temos que ter em mente que nem sempre o usuário quer parar, mas sim fazer um uso administrado da droga, um uso menos prejudicial para a vida dele”, constata Neide.
Para Caio Westin, existe muito ainda a ser feito em relação aos usuários de drogas soropositivos. “Essas pessoas precisam deixar de se esconder, precisam de mais recursos sociais, mais acessos. O programa de redução de danos tem muito a caminhar. Precisamos conquistar novos espaços”, afirma ele.
Clarice Roseto Soares, 52 anos, usava drogas injetáveis e bebida alcoólica quando soube que era portadora do HIV, em 1989. Desde então, só pensava em morrer. De nada adiantava os médicos lhe explicarem que ela poderia viver com o HIV. Ela não queria se tratar e não se achava capaz de largar as drogas. Até que um dia, durante uma overdose, ao ver que estava mesmo morrendo, ficou com muito medo e resolveu procurar ajuda. Iniciou seu tratamento e começou a trabalhar. Depois de um tempo bem, longe das drogas, Clarice passou a ter dificuldades financeiras e resolveu traficar e consumir crack. “O crack me levou para o pior lugar onde já estive: a rua. Passei por várias casas de apoio mas, na verdade, só queria um lugar para comer ou dormir e depois cair nas drogas novamente. Eu não queria mudar de vida. Enquanto você não conhece alguma coisa para colocar naquele vazio que você preenche com a droga, você vai sempre voltar para droga. Essa é a história de todo viciado como eu”, diz ela.
Um dia, Clarice foi acolhida por uma casa para moradores de rua que mudou o rumo da sua vida. “Nessa casa, eu ouvi a palavra de Deus. Isso tocou profundamente meu coração e eu quis me recuperar” . Porém, mais uma vez , ela teve uma recaída e voltou para o crack. “Essa foi uma fase muito difícil porque já não sentia mais prazer algum com a droga, só frustração e muita culpa. Eu não queria mais isso para mim, não queria mais traficar, mas não sabia como ganhar dinheiro. Tive a idéia, então, de comprar alguma coisa para vender. E várias pessoas me ajudaram. Consegui um isopor e dinheiro para comprar gelo e refrigerantes. Livrei-me das drogas, saí da rua e aluguei um quarto. Já melhorei muito minha vida e hoje tenho uma barraquinha dentro do hospital onde me trato, o Craaids, na cidade de Santos – SP. Não me sinto mais um lixo. Tenho dignidade. Tenho a confiança das pessoas e amizade. O vazio que havia no meu coração foi preenchido”, acredita Clarice.
Humberto Susumo, 42 anos, pensou que teria poucos anos de vida quando soube que era portador do HIV, em 1989. Ao ver pela televisão imagens de pessoas morrendo de Aids, ele se desesperou. “Resolvi me refugiar nas drogas. Preferia morrer de overdose a morrer de ‘peste gay’, como a Aids era chamada naquela época. Gastei todo o meu dinheiro com o crack e acabei perdendo a visão. Depois que fiquei cego, procurei um centro de tratamento para Aids mas não conseguia tomar os anti-retrovirais, vomitava tudo e ainda continuava me drogando. Eu me sentia um inútil, não saía de casa e ficava esperando a morte chegar. Achava que as pessoas tinham que ter dó de mim”, conta Humberto.
Os exames de CD4 e carga viral de Humberto estavam muito ruins e seu médico lhe deu pouco tempo de vida caso ele não parasse com o crack e levasse o tratamento a sério. Ele já havia tentado parar com as drogas mas sem sucesso. “Depois da sentença de meu médico, fui com um vizinho a uma reunião do grupo de auto-ajuda para viciados em drogas que ele freqüentava. Era a minha última chance. Passei a freqüentar as reuniões e logo o coordenador do grupo me chamou para dar palestras a outros dependentes. Eu queria alertar os outros sobre os perigos da droga, mas precisava estar bem fisicamente e para isso precisava tomar os anti-retrovirais. Hoje faço meu tratamento e consegui me livrar das drogas. É muito importante estar perto de outras pessoas que estão também tentando se levantar. Freqüentar esse grupo me deu uma estrutura que eu não tinha e aumentou minha auto-estima. Por sugestão deles fiz um curso para cegos e descobri que posso ser independente, que posso me cuidar”, comemora Humberto.

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