A CRACOLÂNDIA QUE VOCÊ NÃO VÊ.

Por Talita Ribeiro / revista crack - ano I numero I.

TUDO O QUE A GENTE CONHECE ESTÁ ALI, MAS A NOITE CHEGA E OS PERSONAGENS SÃO OUTROS.

Todo paulistano médio conhece a região da Luz/José paulino/Santa Ifigênia como sendo boa para compras, de eletrônicos ou roupas. Todo paulistano culturalmente ativo sabe que ali há o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca é a Sala São Paulo, Todo e qualquer paulistano não ousaria pisar lá (literalmente, a pé) depois das 22h.
Porque à noite, o comercio e a cultura são outros. E quem circula pela área não é considerado cidadão da metrópole mais rica do pais.
Quem ocupa as esquinas, quadras e avenidas, se mistura com o lixo e divide espaço com os ratos, que cruzam as ruas a procura de comida. A noite não há quem desvie dos moribundos ou crianças alucinadas. E, vez em quando, se tem a impressão que não há uma alma sequer, mesmo que 80 usuários de crack estejam ocupando a mesma sarjeta. Até quem tenta se inserir nesse meio - por politica, trabalho ou missão - dificilmente consegue penetrar nessa outra realidade, onde o olhar não para, nem brilha, mas ainda busca, desesperadamente, por 8 segundos.
" De 5 a 8 segundos é o tempo que dura o "barato" do crack. Nesse curto espaço de tempo, dizem, a sensação é equivalente a 8 orgasmos, conta um dos missionários do cena, que conversa com os dependentes durante a noite, para convidá-los a conhecer o projeto e, quem sabe, embarcar numa outra viagem - a de reabilitação. Ele circula normalmente entre a aglomeração de usuários. Diferente do que os telejornais ensinam, a cracolândia não é um lugar sem leis. Religiosos são respeitados e, muitas vezes, ignorados pela massa. Quando a policia derrapa com as viaturas nas ruas e saca seus sprays de gás de pimenta, todos vão para outra esquina. Quando um segurança de uma loja qualquer manda  eles saírem, o mesmo acontece. Não há sexo e violência explicita na rua - não o tempo tod! não há tempo suficiente para concorrer com qualquer balada de classe media alta em uma sexta à noite, com seus "ptiboys" e "putas de luxo". Os usuários vez em quando discutem entre si, mas os gritos são, em sua maioria, parte da negociação de droga. 

BOLSA DO CRACK
Quem dá dois por uma pedra? Quem tem uma nota de cinco? e um cachimbo novo?. com frases desse tipo, a bolsa do crack funciona a noite inteira, com usuários pra lá e pra cá comprando e vendendo tudo o que podem: de cigarros a 25 centavos até salsichas vencidas achadas no lixo. Nesse mercado quase todos são compradores em potencial, menos os que chegam em bicicletas trazendo mais pedras em sacolas plásticas, para fazer girar a roda da dependência.
Quando não está negociando, só pode estar consumindo, procurando restos na calçada ou tentando tirá-los do cachimbo. nesse ciclo nada que tenha ligação com o crack importa. Ninguém liga para os carrões que cruzam a região noite a dentro para comprar a droga. e não é raro ver pessoas bem vestidas e com tênis da moda fumando ao lado de moradores de rua.
Não existem mais rico ou mais pobre quando se está rente ao chão.
nesse contexto, crianças de dez anos agem como se tivessem o dobro. são chamadas de dimenor, mas só isso as diferenças dos demais. com uma casca dura de sujeira preta ou incrivelmente limpas, elas sabem o próprio nome, há quanto tempo estão nesta vida, onde doem as feridas e, principalmente, que precisam de uma pedrinha. os traços infantis quase se perdem em meio a tanta opressão, mas quando pedem ajuda para conseguir a próxima brisa, são como tantas outras crianças pedindo doce. e são frágeis, muito mais frágeis do que aparentam quando as olhamos de canto de olho, andando a passos rápidos. mas essa não é uma características só delas. 
Os usuários de crack vistos de perto e em seu habitat, em nada lembram os retratos em telejornais. No lugar do medo e do ódio, despertam uma tristeza imensa, acompanhada por um sentimento de impotência. Nada que não seja a pedra parece tocá-los, inclua aí a sua presença. mas quem, mesmo assim, tenta se aproximar tem uma surpresa. amão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, a voz embarga ao contar sobre o passado, ainda há pulsação e sorrisos sinceros. apesar de toda a ânsia pela droga, há outros tipos de carências não suprimidas, tão importantes quanto. E para trata-las é preciso bem mais que 8 segundos. mas isso o paulistano ainda não sabe.  

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