UMA MADRUGADA NA CRACOLÂNDIA

Por Marco Gomes / revista crack ano I nº I.

NAS RUAS DA REGIÃO, UM CASAL ME ENSINOU SOBRE MISSÃO, MOTIVAÇÃO, TRABALHO E RECONHECIMENTO NO INTERVALO DE UMA MADRUGADA.

A madrugada foi intensa: viciados, pressão da policia, spray de pimenta, comercio de de bugigangas, respeito dos viciados pelo pessoal da comunidade evangélica Nova Aurora (cena), crianças, velhos, mulheres e homens, cachorros, ratos... muitas histórias.
Nós da missão, somos praticamente invisíveis. segundo o pessoal do Missão urbanas, do grupo cena, os locais só veem duas coisas: dinheiro e crack. aproximamos-nos de alguns, individualmente, perguntamos o nome, historias, deixamos palavras de esperança e convite para receber ajuda na sede do grupo. No expediente da sede da Cena, o morador da região recebe recebe atenção, higiene pessoal, roupas, comida, assistência médica e jurídica e a oportunidade de ir pra uma clinica de recuperação, se assim ele desejar. 
Já ouvi dizer que os viciados estão lá por escolha própria. Concordo que parte deles está lá por consequencia de escolhas que fizeram, sim. Mas me pergunto: uma criança de 10 anos, viciada em crack, com o pé inchado de andar descalço, que mal consegue conversar por sequelas da droga, teve tempo de fazer escolhas? Trouxe muitas historias dessa experiência, aprendi muito mais com eles que eles comigo, e quero compartilhar uma história especial:
Madrugada de sexta pra sábado, um dia qualquer, três da manhã, centro de São Paulo. Na cracolândia, os viciados chegam a fechar a rua. Apenas em um cruzamento contei aproximadamente 80 pessoas em volta de nós: comprando, vendendo, trocando, conversando, gritando e principalmente, fumando crack. O barulho é ensurdecedor, não pelos decibéis - que se aproximam de uma praça de alimentação de shopping lotada ou pátio de escola em horário de recreio -, mas pela tensão. Há violência, dificilmente física, mas sempre psicológicas e social. É como estar dentro de um barril de pólvora rolando ladeira abaixo.
Em meio ao frenesi da madrugada na cracolândia, passou um casal: senhor de aproximadamente 50 anos, guarda-chuva na mão, bíblia embaixo do braço, roupas simples, camisa, calça social, sapatos. A esposa, na mesma faixa etária, usava saia até os joelhos, blusa branca, bolsa pequena na mão, cabelo amarrado, bíblia embaixo do braço também. eles não têm ligação com a Missão cena. Observei o comportamento dos dois por algum tempo. 
O casal passava em meio aos viciados, abordava um deles por 3 segundos para dizer bem baixinho " Jesus te ama" ou "deus te abençoe", e segue a caminhada para abençoar mais um, discretamente. 
Os dois não demonstravam medo, duvida, nojo, desprezo. Não esperavam que o viciado se convertesse naquela abordagem e não alongavam a interação. 
Sendo três da madrugada de sexta para sábado, eles podiam estar em casa dormindo, se relacionando, ou ela flertando com o vizinho e ele com uma mulher de 20, ou trabalhando numa lanchonete de 24h, ou bebendo e se divertindo num bar. Mas eles estava na cracolândia, caminhando onde eu não tenho vontade de andar, respirando um ar que me fez sentir vontade de andar, respirando um ar que me fez sentir vontade de vomitar o resto da noite, falando com gente que eu não queria acreditar existir, colocando em risco a vida do cônjuge e a sua própria.
O casal estava lá para dar atenção, por acreditar ser importante levar uma mensagem de esperança, por acreditar nunca ser tarde para a recuperação. Fazem isso com motivação e sem esperar reconhecimento de qualquer outra pessoa. Nenhum ser humano fora dali vê ou reconhece seu trabalho - eu estou reconhecendo, mas nem sei seus nomes! Não há promoção garantida, recompensa em dinheiro, acúmulo de bens materiais. Eles fazem aquilo que acreditam ser certo, e vão embora incógnitos, para voltar daqui uns dias e continuar a missão.
AMOR INCONDICIONAL é isso! se em 50 anos de "Deus te abençoe" sussurrados na Cracolândia, o amor desse casal ajudar a libertar um único viciado, quem esteve lá nesse dia sabe que valeu o esforço. 


Serviço: a comunidade evangélica Nova Aurora (cena) tem como missão resgatar pessoas do vicio das drogas em lugares como a cracolândia, no centro velho de São Paulo, e encaminhá-las para tratamento adequado, quando é da vontade desses usuários. 

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